Na verdade, sempre tive horror visceral de “problemas filosóficos” genéricos, colocados como grandes questões teóricas independentes do local e do tempo. Se algo aprendi com a filosofia espanhola de José Ortega y Gasset e Julian Marías, a cuja leitura deslumbrada consagrei tantas horas na minha juventude, é que toda pergunta formulada urbi et orbi não tem sentido nenhum exceto aquele que cada um lhe atribua desde a circunstância histórica e biográfica muito peculiar que é a sua. Então por que não abandonar logo as grandes perguntas e dedicar-nos a buscar uma orientação nessa circunstância, a compreender os fatores que determinam o curso da nossa vida, moldam a nossa personalidade e geram, no mais das vezes sem que o percebamos, as nossas “opiniões”?
Não foi dessa maneira, afinal, que a filosofia começou? Um aspecto que chama a atenção nos diálogos socráticos é que o filósofo jamais parte das alturas gerais de uma questão pronta, mas extrai as questões da própria situação de discurso em que se confronta com seus concidadãos atenienses. Não é isto uma exigência elementar decorrente do nosce te ipsum? Como posso conhecer-me a mim mesmo se tudo o que faço é discutir pontos consagrados na bibliografia filosófica e, mais ainda, se o faço não desde o empenho pessoal de orientar-me na existência, mas desde um papel social pronto, com um regulamento, um plano de carreira e critérios estabelecidos de aceitação e sucesso no meu grupo profissional, se não também numa patota ideológica?
A filosofia tal como a encontrei em Sócrates era o processo pelo qual uma consciência se apropriava de si mesma e da sua situação na existência, buscando cada vez mais uma atitude responsável perante o conhecimento e a vida. Esse processo era evidentemente inseparável do desenvolvimento da personalidade, da absorção e integração das várias dimensões da vida psíquica, incluindo as paixões e o “inconsciente”, mas também as correntes de idéias e opiniões em circulação, que infectam as cabeças sem que estas tenham o menor controle sobre as influências recebidas (chegou-se ao cúmulo de que uma coisa chamada “consciência crítica” se tornasse ela própria um dos meios mais eficientes de espalhar infecções). O filósofo era alguém no qual, em todas as circunstâncias da vida pessoal e pública, uma consciência centrada e senhora de si predominava sobre a confusão interna e externa e contribuía, de algum modo, para restaurar a ordem nas almas em torno.
A filosofia como “profissão”, tal como se exercia nas nossas universidades, não apenas nada tinha a ver com isso mas era quase uma garantia de que a filosofia no seu sentido originário não poderia caber ali de maneira alguma, exceto talvez como idiossincrasia de esquisitões perfeitamente deslocados do ambiente.
Tudo isso já estava claro para mim aos vinte e poucos anos. Mais tarde aprendi em Eric Voegelin que o surgimento da filosofia na Grécia, perdida a síntese da “civilização cosmológica”, respondia à necessidade de buscar a ordem na sociedade por meio da ordem na alma do filósofo, mas isso só confirmava algo que pessoalmente eu já estava buscando fazia tempo.
Sir Michael Dummett define a filosofia como uma atividade “para pessoas que gostam de argumentos abstratos”, e o prof. Gianotti como “um trabalho com textos”. Um sujeito pode terçar argumentos abstratos e analisar textos pelo resto da sua vida sem amadurecer nem um pouco no sentido da consciência integrada, da “ordem na alma”. O que ele faz pode ter “algo” a ver com a filosofia, mas não é filosofia de maneira alguma. O que aí se chama de filosofia é, na melhor das hipóteses, uma ocupação de nerds escrupulosos que não toleram um erro de lógica ou uma citação capenga, mas permanecem existencialmente atrofiados, incapazes de apreender as mais óbvias motivações das suas palavras e as implicações mais inevitáveis das suas atitudes na sociedade.
A ordem na alma é, com certeza, um tipo de “perfeição”, mas não no sentido de uma completude final e sim de uma integração dinâmica, algo que se aproxima menos da imagem estática de uma jóia bem lapidada que da do músico que, nota após nota, vai reencontrando a unidade da frase ainda não terminada. Não é a perfeição da coisa perfeita, mas de um contínuo perfazer-se que nunca se perfaz.
A Igreja bem viu que as virtudes espirituais não florescem antes das cardeais, ou naturais – prudência ou sapiência, temperança, força e justiça. Mas era evidente, para mim, que estas não se acumulavam como dons separados, e sim giravam em torno de uma consciência centrada e responsável, como meros aspectos abstraídos de uma realidade concreta. No sentido originário, a palavra “virtude” não designa um bom hábito, mas uma força, um poder que vem de dentro da alma.
Por isso mesmo não cabia reduzir a ordem da alma à perfeição da “conduta”. A conduta pode ser moldada desde fora, pela mera aquisição de hábitos, mas a questão decisiva é: esses hábitos estão integrados na alma e na consciência, como expressões da personalidade total, ou apenas as adornam como penduricalhos exteriores? Como é feia a bela conduta quando reveste uma alma tosca, fragmentária e superficial!
Sem a menor sombra de dúvida, o que me interessava era a perfeição puramente interior da consciência enquanto tal, mesmo que não se refletisse na conduta de maneira imediata e reconhecível.
É o absurdo dos absurdos que o exercício de algo chamado “filosofia” seja separado do desenvolvimento da consciência, da luta por uma personalidade completa e integrada. Se você fala disso numa faculdade de filosofia, responderão que isso é auto-ajuda ou assunto da faculdade de psicologia.
Mas como se pode buscar a verdade sem levar em consideração a qualidade da consciência que empreende a busca?
Recentemente, para compensar esse “handicap”, inventaram uma frescura chamada “filosofia clínica”, na qual o filósofo profissional se torna um doublé de psicoterapeuta. Como se a psicologia clínica não fosse ela mesma um campo profissional previamente delimitado e pudesse infundir no aluno as virtudes cardeais. Como se articulando duas profissões especializadas, com campos estritamente recortados, se pudesse atingir o âmago da consciência e desenvolvê-la desde dentro. Como se a perspectiva mesma do psicólogo clínico não implicasse a mais estrita neutralidade quanto aos valores morais, religiosos, políticos e existenciais do paciente – isto é, quanto a tudo o que é mais vital para o exercício da filosofia no seu sentido clássico.
Por outro lado, é claro que, se muitos livros de psicologia (ou, no contexto anglo-americano, de crítica literária) têm mais alcance filosófico do que boa parte daquilo que se publica sob o rótulo de filosofia, isso se deve precisamente ao fato de que a redução da filosofia a argumentos abstratos e análise de textos protege o estudante de qualquer contato intelectual com as questões da vida real, que em outras áreas de estudo não podem ser evitadas de todo.
Por exemplo, que raio de coisa pode ser uma “análise de textos” se não vem precedida de anos de formação literária? Pessoas sem capacidade de captar nuances de sentido só podem mesmo aspirar a uma linguagem unidimensional onde a cada “proposição atomística” corresponde um “fato científico”, porque se sentem desorientadas e atônitas diante de qualquer outra linguagem. A “escola analítica”, ao menos na geração dos seus fundadores, constitui-se eminentemente de indivíduos que só conseguem ler o que eles próprios escrevem, ou o que foi escrito especialmente para eles. Os erros monstruosos de interpretação que Bertrand Russell comete na sua “História da Filosofia Ocidental”, quando trata, por exemplo, de Platão ou de Hegel – para não falar da aberração psicótica das suas atitudes políticas --, refletem a mutilação auto-imposta de uma mentalidade que, em prol da perfeição lógica, abdicou da sanidade, mais ou menos como o dr. Simão Bacamarte.
Tirei mais proveito filosófico de Kenneth Burke, William Empson ou F. R. Leavis que de qualquer “filósofo analítico”. O motivo é simples: Burke, Empson e Leavis treinaram para compreender a linguagem humana em vez de reduzi-la a um programa de computador.
Pelo lado psicológico, a coisa é mais séria ainda. Meu amigo Juan Alfredo César Müller definia “neurose” como uma mentira esquecida na qual você ainda acredita. Quantas mentiras esquecidas uma alma pode acumular dentro de si sem que isso deforme gravemente a sua visão dos “problemas filosóficos”, mesmo compreendidos no sentido mais reduzido e curricular da coisa? Que Russell e Wittgenstein fossem uma bela dupla de neuróticos é coisa que todo mundo sabe. Mas nada justifica proceder como se isso fosse um dado biográfico marginal, alheio ao “conteúdo” das suas filosofias. É quase impossível que a filosofia de um neurótico não seja, em boa parte, autodefesa psicológica contra algum fantasma, e que nisso não consista precisamente o seu sentido, por baixo da aparência teorética que a reveste. Separada dessa motivação profunda, uma proposição filosófica é apenas uma fórmula genérica e impessoal que pode ser posta em qualquer boca e que, por isso mesmo, não tem sentido nenhum. Só mesmo um nerd incapaz de dialogar com qualquer ente que não seja um computador pode imaginar que é possível compreender uma sentença isolando-a da motivação psicológica que a determina.
Mas isso não quer dizer que a condição psicológica favorável ao exercício da filosofia coincida com a “saúde mental” tal como a definem as várias escolas de psicologia clínica e psiquiatria. Esse é um conceito redutivo, que tem mais a ver com a adaptação a um determinado meio social – o qual pode ser ele próprio bem neurótico – do que com alguma noção filosófica do que seja uma consciência integrada. Não, malgrado a utilidade que alguns estudos de psicologia possam ter para o filósofo, nada o exime de saltar por cima das noções meramente clínicas (“científicas” o quanto se pretendam) e empreender por si mesmo a busca radical da ordem da alma, que transcende de muito qualquer conceito de “saúde mental”. Nenhuma noção pronta pode substituir esse esforço pessoal."
* Postagem do Professor Olavo de Carvalho em 10 de Dezembro de 2014 no facebook.